
A beata Maria de Araújo era zeladora do Apostolado da Oração, também conhecida como Associação do Sagrado Coração de Jesus, leiga, analfabeta, negra e tinha por “diretor espiritual” o próprio Padre Cícero. Depois do primeiro evento, a transubstanciação repetiu-se por várias semanas, sempre às quartas e sextas-feiras, atraindo número crescente de curiosos e crentes. Reitor do Seminário do Crato, Monsenhor Monteiro comandou cerca de três mil pessoas à capela de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro, local onde Maria de Araújo continuou a operar o inexplicável acontecimento.
Esses ingredientes poderiam dar base a uma farsa ou a uma tragédia ficcional não fosse a história sempre mais imprevisível que qualquer criação imaginária. Imprevisível e surpreendente, pois se Maria de Araújo foi uma das protagonistas dessa história, podemos nos perguntar por que só o Padre Cícero é até hoje conhecido, como tão poucos sabem quem foi a beata que deu origem à fama popular e religiosa do “Padinho”? Essa e várias outras questões conduziram o trabalho de pesquisa de Edianne Nobre por mais de dez anos e a partir dele poderemos conhecer uma parte da história dessa beata, bem como percorrer os caminhos que a fizeram “desaparecer” no rastro da notoriedade alcançada por Cícero.
A primeira contribuição do trabalho de Edianne é mostrar como, muitas vezes, não encontramos as respostas porque as perguntas não foram feitas, e não porque as fontes não existam ou não as possam responder. Além de reunir vasta correspondência de sacerdotes, bispos, médicos e com a Santa Sé, Edianne foi além, incluindo documentação inédita do Archivio Segreto do Vaticano e do Archivio dela Congrezione per la Dottrina dela Fede sobre o caso – parte dela reproduzida em precioso Anexo. A opção pela narrativa dos múltiplos aspectos que envolveram a história construída para Maria de Araújo, seus meandros e nuances, revelam a complexidade de um tempo e as combinações inesperadas que seus personagens puderam construir ou representar. Edianne nos guia pelas sendas dessas muitas possibilidades, com um texto envolvente e uma tese desafiadora, apoiada em documentação variada e rara competência para analisá-las. Que nos deixemos levar por sua leitura é o convite que faço, na certeza de que descobrirão novas perspectivas historiográficas e interpretativas acerca do “milagre de Juazeiro” e de seus personagens.